Imagine uma roda de samba, cada um puxa uma canção, violão, cavaquinho, pandeiro, surdo e tamborim, tamborim que não para um momento sequer mesmo quando os outros instrumentos cessam o percursionista continua a batucar. Eu pego o microfone e me arrisco a cantar:
Madalena, Madalena
Você é meu bem querer,
Eu vou contar pra todo mundo
Que eu quero é você.
(Martinho da Vila)
Um jovem de uns vinte e poucos anos se aproxima visivelmente alcoolizado enquanto o tamborim continua tocando e me diz:
_Você ta rindo do que? _Parece um bobo rindo a toa. Eu respondo:
Calma rapaz estamos todos nos divertindo, porque você não participa. Falei isso e estendi o microfone a ele enquanto todos os olhares divergiram para nós, ele pegou o microfone virou-se para o cara do violão pediu um tom e cantou com a voz meio pastosa:
Você sabe o que é ter um amor meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar este amor meu senhor
Nos braços de um outro qualquer
Você sabe o que é ter um amor meu senhor?
E por ele quase morrer.
E depois encontrá-lo nos braços
Que nem um pedaço do seu pode ser.
Ele cantava olhando para mim com um olhar desafiador como se eu fosse o culpado de algo que lhe havia acontecido, nesta altura da canção ele veio em minha direção, cutucou-me no peito com o dedo indicador e completou:
Há pessoas com nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhe venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, saudade ou rancor.
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte e de dor.
(Lupicínio Rodrigues)
Quando parou de cantar bateu com o microfone em meu peito e ficou me encarando, enquanto isso o tamborim continuava em seu ri timo eu segurei o microfone olhei para o cara do tamborim que quando olhou nos meus olhos parou de batucar.
O silencio que reinou naquele instante foi ensurdecedor, todos olhavam para nós. Eu encarei o rapaz levei o microfone à boca e cantei:
Ninguém sabe as magoas que trago no peito
Quem me vê sorrindo deste jeito
Nem se quer sabe da minha solidão
É que o samba me ajuda na vida
Minha dor vai passando esquecida
Vou levando esta vida do jeito que ela me levar...
Agora foi a minha vez de encarar o rapaz, olhando firme para ele e com o maior sorriso que pude abrir eu completei:
Vamos falar o que quiser
Futebol ou dinheiro
De batuque de samba e até de pandeiro
Mas não fale da vida
Por que você não sabe o que eu já passei
Moço cante esse samba que o verso não para
Batuque mais forte a tristeza se cala
Eu levo esta vida do jeito que ela me levar.
(Benito di Paula)
O rapaz afastou-se trocando as pernas, atirou se em uma cadeira e com os cotovelos na mesa a cabeça entre as mãos desatou em soluços, agora alem do tamborim o cara do surdo continuo batucando também fazendo a marcação da cena que se desenrolava. Uma morena de cabelos longos de um crespo graúdo e olhos... Cada um que imagine a cor que quiser, aproximou-se de mim, estendeu a mão para o microfone que eu entreguei, ela olhou para o rapaz e depois veio em minha direção parou em minha frente e cantou:
É acaba a valentia de um homem
Quando a mulher que ele ama vai embora
É tanta coisa muda nesta hora
E o mais valente dos homens chora.
Diz que faz e acontece que não tem medo de nada.
Levanta a voz fala alto maltrata a mulher amada
Quando ela cisma e vai embora a montanha se desmancha
E o mais valente dos homens chora como criança.
(Benito di Paula)
Ela parou de cantar, mas a batucada continuou alguém me alcançou outro microfone e eu senti que ia ser posto em cheque pela morena seus olhos lembram... Deixa pra lá, não deu outra ela me encarou e disse:
_Diz ai tiozinho, por que todo homem enche a cara nestas horas? Respondi:
_Citando um poeta gaudério:
Quem se perde por rabo de saia
Só se acha no fundo de um copo!
(João de Almeida Neto)
Todos riram, ela olhou para todos e o riso cessou então ela disse:
_ Tão rindo hem? Algum de vocês tem outra explicação? Silencio... Só o som do tamborim e do surdo se ouvia, me encarando novamente ela disse:
_E depois, o que acontece? Como se explica o fogo?
_O problema não é o fogo e sim os motivos que levaram a ele, normalmente é mais fácil achar que a culpa é de outro, a mensagem dele para mim foi:
Tire seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor.
(Nelson Cavaquinho)
_Amanha com a ressaca vai ser pior, encarar os amigos, alguns vão fazer ares de penalizados, outros vão rir como agora, outros vão fingir e no final tudo vai depender só dele. Ele pode ir a ela e pedir, mas se o erro não for dele vai ficar desmoralizado e ainda existe a possibilidade de ser rejeitado, quanto ao fogo: Se foi o primeiro não será o ultimo, este foi por despeito o próximo pode ser por alegria em uma comemoração, é coisa que acontece quanto ao resto é questão de tempo, tropeçou e caiu tem que levantar sozinho e assumir o tombo como na canção conhece?
Chorei... Não procurei esconder
Todos viram... Fingiram...
Pena de mim não precisava
Ali onde eu chorei qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava!
Todos se uniram em uma só voz cantando novamente esta parte inclusive o rapaz que se levantou agora já mais firme e abraçou-se a mim e a morena e o cara do tamborim não cantava, ele gritava. A segunda parte a morena cantou sozinha ela conhecia muito bem a canção.
Um homem de moral não fica no chão
Nem quer que mulher lhe venha dar a mão
Reconhece a queda, mas não desanima.
Levanta sacode a poeira e da volta por cima.
No final todos cantaram juntos novamente:
Reconhece a queda, mas não desanima.
Levanta sacode a poeira e da volta por cima!
(Noite Ilustrada)
Quando sai da roda de samba o nosso amigo despeitado já estava cercado por algumas meninas dispostas a consolá-lo, pretendia sair à francesa, mas a morena viu e perguntou:
_Já vai Tiuo?
_Sim,
Tenho minha casa pra olhar.
(Adoniran Barbosa)
Cantarolei.
_A gente se vê de novo? Perguntou.
_Acho que não. Ela pegou minha mão segurando entre as dela e disse:
_Quem sabe? E cantarolou.
Quem sabe se nessas voltas que a vida da
Você pode mudar de idéia e me procurar...
(Benito di Paula)
_Quiçá! Respondi sorrindo, dei-lhe um beijo na testa e sai à rua, enquanto caminhava ia pensando: Quem sabe? Eu sei, mas aqueles olhos... Realmente são muito parecidos, mas não é ela.